O Velho Chen e o meu amigo da universidade certamente tinham razão acerca de uma coisa. Seria muito difícil encontrar mulheres dispostas a falar livremente comigo. Para as chinesas, o corpo nu é objeto de vergonha, não de beleza. Elas o mantêm coberto. Pedir-lhes que me deixassem entrevistá-las seria como pedir que tirassem a roupa. Percebi que precisaria tentar meios mais sutis para descobrir sobre a vida delas.
As cartas que recebia dos meus ouvintes, cheias de anseios e esperança, foram o meu ponto de partida. Perguntei ao meu diretor se podia acrescentar, no final do programa, um espaço especial para mulheres, onde eu iria discutir e talvez ler em voz alta as cartas recebidas. Ele não se opôs à idéia: também queria entender o que as chinesas pensavam, para lidar melhor com o relacionamento tenso que tinha com a esposa. Mas a autorização não dependia dele; eu teria que enviar um requerimento ao escritório central. Eu estava mais do que familiarizada com o procedimento: fileiras de altos funcionários na estação, que eram meros meninos de recados, com condecorações mas sem nenhum poder executivo. A última palavra era dos escalões superiores. Seis semanas depois o meu requerimento foi devolvido, adornado com quatro carimbos vermelhos de aprovação oficial. O tempo que eu pretendia criar para as ouvintes tinha sido reduzido para dez minutos. Mesmo assim, senti como se estivesse caindo maná do céu.
O impacto dos meus dez minutos para cartas de mulheres foi muito além das minhas expectativas: o número de cartas aumentou, a ponto de eu me ver recebendo mais de cem por dia. Seis estudantes universitários tiveram que vir me ajudar no trabalho. Os assuntos das cartas também se diversificaram mais. As histórias que as ouvintes me contavam tinham ocorrido no país inteiro, em vários momentos dos últimos setenta anos, mais ou menos, e vinham de mulheres com antecedentes sociais, culturais e profissionais bem diferentes. Revelavam mundos ocultos das vistas da maioria da população, inclusive de mim mesma. Eu me emocionava profundamente com as cartas. Muitas incluíam toques pessoais, como flores, folhas ou casca de árvore prensadas, e lembrancinhas de croché. Uma tarde, ao voltar para o escritório, encontrei sobre a minha mesa um pacote e um bilhete do porteiro. Uma mulher de uns quarenta anos tinha deixado o embrulho com ele e pedira que me entregasse. Não deu nome
nem endereço. Vários colegas me aconselharam a passar o pacote pela inspeção do departamento de segurança antes de abrir, mas resisti. Achava que não se podia prever o destino e um forte impulso me impelia a abrir o pacote imediatamente. Encontrei uma velha caixa de sapatos, com o belo desenho de uma mosca com aparência humana na tampa. As cores estavam quase completamente desbotadas. Ao lado da boca da mosca, havia uma frase: “Sem a primavera, as flores não podem desabrochar; sem a dona, isto não pode ser aberto.” Havia um pequeno cadeado na tampa. Hesitei. Devia abrir? Aí notei uma mensagem minúscula, obviamente escrita havia pouco tempo: “Xinran, abra, por favor.” A caixa estava cheia de pedaços de papel descorados e amarelados. Recobertos de texto, não eram uniformes no tamanho, no formato nem na cor: eram sobretudo tiras de papel, do tipo usado para registros de hospital. Pareciam um diário. Também havia uma carta grossa, registrada, endereçada a Yan Yulong, na Equipe de Produção X, província de Shandong. Vinha de alguém chamado Hongxue, que dava como endereço um hospital na província de Henan. A data no carimbo do correio era 24 de agosto de 1975. Estava aberta e, no alto, lia-se: “Xinran, respeitosamente lhe peço que leia cada palavra. Uma ouvinte fiel” Como não tinha tempo de examinar os pedaços de papel antes de entrar no ar, decidi ler a carta primeiro:
Querida Yulong,
Você vai bem? Desculpe por não ter escrito antes. Não há motivo para isso, é só que tenho muito a dizer e não sei por onde começar. Por favor me desculpe.
Já é tarde demais para lhe implorar que perdoe o meu erro terrível e irreversível, mas eu ainda quero lhe dizer: querida Yulong, eu Sinto muito!
Você me fez duas perguntas na sua carta: “porque você não quer ver o seu pai” e “o que a fez pensar em desenhar uma mosca e porque que a fez tão bonita”:
Querida Yulong, essas duas perguntas são muito, muito dolorosas para mim, mas vou tentar responder.
Qual é a menina que não ama seu pai? Um pai é uma grande árvore abrigando a família, as vigas que sustentam uma casa, o guardião de sua mulher e de seus filhos. Mas não amo meu pai — eu o odeio. Na véspera de
Ano-Novo do ano em que fiz onze anos, levantei bem cedo e, inexplicavelmente, estava sangrando. Fiquei tão assustada que me pus a chorar. A minha mãe, que veio ter comigo quando me ouviu, disse: “Hongxue, você cresceu”: Ninguém, nem mesmo ela, tinha me falado sobre coisas de mulheres antes. Na escola, ninguém ousava fazer essas perguntas ultrajantes. Naquele dia, mamãe me deu uns conselhos básicos sobre como lidar com o meu sangramento, mas não explicou mais nada. Fiquei entusiasmada: tinha me tornado mulher! Saí correndo pelo quintal, pulando e dançando durante três horas. Até esqueci do almoço. Um dia, em fevereiro, estava nevando muito e mamãe tinha saído para visitar uma vizinha. Meu pai tinha vindo da base militar, para uma das suas raras visitas. Ele me disse: “Sua mãe diz que você cresceu. Vamos, tire a roupa para o papai ver se é verdade”: Eu não sabia o que ele queria ver, e estava muito frio — eu não queria tirar a roupa.
“Rápido! O papai ajuda!” disse ele, tirando-me a roupa com destreza. Ele, que normalmente tinha os movimentos lentos, estava totalmente diferente. Começou a passar as mãos pelo meu corpo inteiro, perguntando o tempo todo: “Esses mamilozinhos já incharam? E daqui que o sangue vem? Esses lábios querem beijar o papai? É gostoso quando o papai passa a mão aqui, assim?”:
Eu me sentia morta de vergonha. Pelo que me lembrava, nunca tinha estado nua na frente de ninguém, exceto nos banhos públicos separados. Meu pai notou que eu estava tremendo. Disse-me que não tivesse medo e me preveniu para não contar nada à mamãe. “Sua mãe jamais gostou de você” disse. “Se ela descobrir que eu amo você tanto assim, vai querer saber ainda menos de você.”
Essa foi a minha primeira “experiência de mulher”: Depois, tive uma náusea muito forte. A partir de então, bastava que minha mãe não estivesse na sala — ainda que estivesse só na cozinha, cozinhando, ou no banheiro — para que meu pai me prensasse atrás da porta e me alisasse inteira. Fui ficando com um medo cada vez maior desse “amor”:
Mais tarde ele foi transferido para outra base militar. Minha mãe não podia ir junto por causa do emprego dela. E disse que tinha se esgotado
criando a mim e ao meu irmão e que queria que meu pai cumprisse suas responsabilidades por um tempo. Assim, levou-nos para morar com ele. Eu tinha caído na toca do lobo.
A partir do dia em que minha mãe foi embora, toda tarde meu pai se enfiava na minha cama enquanto eu descansava. Ocupávamos um aposento num dormitório coletivo e ele usava a desculpa de que meu irmãozinho não gostava de cochilar à tarde para trancar a porta e deixá-lo do lado de fora. Nos primeiros dias, só passava as mãos pelo meu corpo. Depois começou a forçar a língua dentro da minha boca. Aí começou a me cutucar com a coisa dura na parte inferior do seu corpo. Vinha para a minha cama, já sem ligar se era dia ou noite. Usava as mãos para me abrir as pernas e me molestar. Até enfiava os dedos dentro de mim.
Naquela altura tinha parado de fingir que era “amor paterno”: Ameaçava-me, dizendo que, se eu contasse para alguém, seria criticada em público e teria que desfilar pelas ruas com palha na cabeça, porque e já era o que chamavam de “um sapato usado”: Meu corpo, que ganhava formas rapidamente, o deixava cada vez mais excitado, enquanto eu me sentia mais e mais aterrorizada. Pus um cadeado na porta do quarto, mas ele não se importava de acordar todos os vizinhos e batia até que eu abrisse. Às vezes enganava as outras pessoas no dormitório e elas o ajudavam a forçar a minha porta, ou então dizia que precisava entrar pela janela para pegar alguma coisa porque eu tinha o sono muito pesado. Outras vezes era meu irmão quem o ajudava, sem entender o que fazia. Assim, trancasse eu a porta ou não, ele entrava no meu quarto, em plena vista de todos.
Quando ouvia as batidas, eu com freqüência ficava paralisada de medo e me enrascava tremendo embaixo do acolchoado. Os vizinhos me diziam: “Você estava dormindo como uma morta. O coitado do seu pai teve que entrar pela janela para pegar as coisas dele!”: Eu não ousava dormir no meu quarto, não ousava ficar sozinha de maneira alguma. Meu pai percebeu que eu estava sempre encontrando pretextos para sair e criou a regra de que eu tinha que estar de volta na hora do almoço, todo dia. Mas era comum eu adormecer antes mesmo de terminar de comer: ele estava pondo remédio para dormir na minha comida.
Eu não tinha como me proteger.
Muitas vezes pensei em me matar, mas não tive coragem de abandonar o meu irmãozinho, que não teria ninguém a quem se voltar. Comecei a ficar cada vez mais magra, até que adoeci gravemente. Na primeira vez em que fui internada no hospital militar, a enfermeira de plantão disse ao médico, dr. Zhong, que eu tinha o sono muito perturbado. Acordava assustada ao mais leve ruído. O dr. Zhong, que não conhecia os fatos, disse que era por causa da minha febre alta.
Mas, mesmo enquanto eu estava assim doente, meu pai vinha ao hospital e se aproveitava de mim, que estava com um tubo na veia e sem poder me mexer. Uma vez, quando ouvi entrando no meu quarto, comecei a gritar descontroladamente, mas meu pai simplesmente disse à enfermeira — que viera correndo — que eu tinha muito mau gênio. Naquela primeira vez só passei duas semanas no hospital. Quando voltei para casa, encontrei meu irmão com um machucado na cabeça e manchas de sangue no casaco.
Contou que o papai estivera de péssimo humor enquanto estive no hospital e o surrava ao menor pretexto. Naquele dia o animal doentio que era o meu pai apertou-se enlouquecido contra o meu corpo, ainda desesperadamente frágil e fraco, sussurrando que tinha morrido de saudade de mim! Não pude conter o choro. Aquele era o meu pai? Tinha tido filhos só para satisfazer seus desejos animalescos? Dera-me a vida para quê?
Minha experiência no hospital tinha me mostrado um jeito de continuar vivendo. Injeções, comprimidos e exames de sangue eram preferíveis a viver com meu pai. Assim, comecei a me ferir repetidamente. No inverno, encharcava-me de água fria e saía para o gelo e a neve. No outono, comia comida estragada. Uma vez, em desespero, prendi o braço embaixo de um pedaço de ferro que estava caindo, para cortar a mão esquerda na altura do pulso. (Não fosse por um pedaço de madeira macia embaixo, eu certamente teria perdido a mão.) Nessa ocasião, ganhei sessenta noites inteiras de segurança. Entre ferimentos que eu mesma me causava e os remédios, fui ficando aflitivamente magra.
Mais de dois anos mais tarde, minha mãe conseguiu uma transferência no emprego e veio morar conosco. A sua chegada não afetou o desejo
obsceno que meu pai sentia por mim. Disse que o corpo dela estava velho e murcho e que eu era a concubina dele. Minha mãe não parecia notar a situação, até que um dia, no final de fevereiro, quando meu pai estava me batendo porque eu não tinha lhe levado alguma coisa que ele queria, gritei com ele pela primeira vez na vida, dividida entre a mágoa e a raiva: “O que você é? Bate em todo mundo quando tem vontade, molesta qualquer um quando quer!”:
Minha mãe, que assistia à cena, perguntou o que eu queria dizer com aquilo. Assim que abri a boca, meu pai, encarando-me furioso, “Não diga absurdos!”: Eu não agüentava mais e contei a verdade à minha mãe. Vi que ela ficou terrivelmente perturbada. Mas, poucas horas depois, a minha “sensata” mãe me disse: “Pela segurança da família toda, você vai ter que suportar isso. Caso contrário, o que é que nós todos vamos fazer?”
Minhas esperanças foram completamente destruídas. Minha própria mãe me dizia que tolerasse os abusos de meu pai, marido dela. Onde estava a justiça disso? Naquela noite minha temperatura chegou a quarenta graus. Fui novamente trazida para o hospital, onde continuo até agora. Desta vez não tive que fazer nada para provocar a doença. Simplesmente desmaiei, porque tinha tido um colapso cardíaco. Não tenho intenção alguma de voltar para aquele suposto lar.
Querida Yulong, é por isso que não quero ver meu pai. Que espécie de pai é ele? Não digo nada por causa do meu irmãozinho e da minha mãe (ainda que ela não goste de mim). Sem mim, eles ainda são uma família como antes. Por que foi que desenhei uma mosca e por que foi que afiz tão bonita?
Porque anseio por uma mãe e um pai de verdade; uma família de verdade, onde eu possa ser uma criança e chorar nos braços dos meus pais; onde eu possa dormirem segurança na minha cama, em casa; onde mãos carinhosas me afaguem a cabeça para me consolar depois de um pesadelo. Desde a infância mais tenra, nunca tive esse amor, Esperei e ansiei por ele, mas nunca o tive, e agora jamais o terei, pois só se tem uma mãe e um pai.
Uma mosquinha me mostrou um dia o toque de mãos carinhosas. Querida Yulong, não sei o que vou fazer depois disto. Talvez eu a procure
para ajudá-la de alguma forma. Posso fazer muitas coisas e não tenho medo de dificuldades, desde que possa dormir em paz. Você se importa se eu for?Escreva e me diga, por favor. Eu gostaria mesmo de saber como você vai. Continua praticando o seu russo? Você tem remédios? O inverno está chegando de novo, você precisa se cuidar bem.
Espero que me dê uma oportunidade de remediar o mal que causei e fazer alguma coisa por você. Não tenho família, mas espero poder ser uma irmã mais nova para você.
Desejo-lhe felicidade e boa saúde!
Sinto saudade de você.
Hongxue, 23 de agosto de 1975.
Esta carta me abalou profundamente, e encontrei dificuldade em me controlar durante a transmissão daquela noite. Muitos ouvintes escreveram depois, perguntando se eu estava doente. Terminado o programa, telefonei para uma amiga pedindo que fosse à minha casa para ver se estava tudo em ordem com meu filho e a babá. Depois, sentei no meu escritório vazio e pus em ordem os pedaços de papel. Foi assim que li o diário de Hongxue.
27 de fevereiro — Neve forte
Como estou feliz hoje! Novamente consegui o que queria: estou de volta ao hospital. Desta vez não foi muito difícil, mas estou sofrendo muito!
Não quero mais pensar. “Quem sou eu? O que sou eu?” Essas perguntas são inúteis, como tudo em mim: meu cérebro, minha juventude, minha inteligência e meus dedos ágeis. Agora só quero dormir muito e profundamente.
Espero que os médicos e as enfermeiras sejam um pouco negligentes e não inspecionem as enfermarias com muita atenção nas rondas desta noite. O quarto do hospital é bem quentinho e confortável para escrever.
2 de março — Ensolarado A neve derreteu depressa. Ontem de manhã ainda estava tudo branco; hoje, quando corri lá para fora, a pouca neve que restava estava toda amarelada, como os dedos da Velha Mãe Wang, a paciente que fuma como uma chaminé. Adoro quando neva muito. Fica tudo branco e limpo; o vento faz desenhos na
superfície da neve, os pássaros saltitantes deixam marcas delicadas, e também as pessoas, involuntariamente, deixam pegadas bonitas. Ontem saí de mansinho várias vezes. O dr. Liu e a enfermeira-chefe brigaram comigo: “Você deve estar maluca, saindo com uma febre dessas! Está tentando se matar?” Não me importo com o que eles dizem. Podem ter a língua afiada, mas eu sei que no fundo são bondosos. É uma pena que eu não tenha uma máquina fotográfica. Ficaria bonita uma foto da paisagem coberta de neve.
17 de abril — Ensolarado (vento mais tarde?) Há uma paciente aqui chamada Yulong. Vem para o hospital várias vezes por ano por causa de reumatismo crônico. A enfermeira Gao está sempre com pena dela e lhe dando atenção, perguntando como é que uma garota tão bonita e esperta pode ter uma doença incômoda dessas. Yulong me trata como uma irmãzinha querida. Quando está aqui, ela me faz companhia no pátio, sempre que consigo sair do quarto (os pacientes não têm permissão para visitar outras enfermarias. Os funcionários têm medo de que um contamine o outro ou de que o tratamento seja afetado). Jogamos vôlei, badminton ou xadrez, e conversamos. Ela não deixa que eu me sinta sozinha. Quando tem alguma coisa gostosa de comer ou para brincar, divide comigo. Outra razão de eu gostar de Yulong é que ela é muito bonita. Há tempo ouvi alguém dizer que amigos começam a ficar parecidos um com o outro depois de algum tempo. Seria ótimo se eu pudesse ter a metade da beleza de Yulong. Não sou só eu que gosto de Yulong, todo mundo gosta. Se ela precisa fazer alguma coisa, todo mundo se dispõe a ajudar. Ela também ganha favores especiais, que os outros não ganham. Por exemplo, os lençóis dela são trocados duas vezes por semana, em vez de uma; ela pode receber visitas no quarto; e nunca tem que esperar pela atenção de um enfermeiro. Os enfermeiros homens sempre encontram motivo para ficar por perto do quarto dela. Tenho certeza de que Yulong também recebe comida melhor.
Tenho muita inveja dela. Como diz a Velha Mãe Wang, o rosto dela é sua boa sorte. Mas a Velha Mãe Wang não gosta de Yulong. Diz que ela é como a fada raposa das lendas, que atrai os homens para a morte. Levantei escondido para escrever, mas a dra. Yu me descobriu na sua ronda noturna. Perguntou se eu estava com fome e me convidou para fazer um lanche. Disse que estômago cheio me ajudaria a dormir.
Na sala dos funcionários de plantão, a enfermeira Gao acendeu o fogareiro e
começou a preparar macarrão com cebola frita. De repente faltou luz. A única claridade vinha do fogareiro. A dra. Yu saiu às pressas para ir dar uma olhada nos pacientes com uma lanterna. A enfermeira Gao continuou cozinhando. Parecia acostumada a fazer coisas no escuro, e logo o ar se encheu com o cheiro de cebola frita. A bondosa enfermeira Gao sabe que eu adoro cebola crocante e separou duas colheradas, especialmente para mim. A luz logo voltou, a dra. Yu também, e nós três nos sentamos para comer. Enquanto saboreava minha segunda colherada, contei à dra. Yu que a enfermeira Gao estava me cobrindo de mimos e que tinha separado as cebolas com todo o cuidado para mim.
De repente a dra. Yu empurrou a minha colher para longe e perguntou, aflita: “Você engoliu?”
Fiz que sim, intrigada. “Esta é a minha segunda colherada.”
A enfermeira Gao também ficou espantada. “Qual é o problema? Por que é que você está assustando a gente?”
A dra. Yu apontou, nervosa, para as cebolas espalhadas pelo chão. Entre elas havia um montão de moscas mortas. Tinham sido atraídas para fora do seu esconderijo pelo calor e pela luz do fogareiro. Enfraquecidas pelo inverno, caíram na panela. No escuro, ninguém tinha percebido.
A dra. Yu e a enfermeira Gao foram logo buscar um remédio. Tomaram dois comprimidos cada uma e eu, quatro, que engoli com uma solução de glicose. O macarrão, que cheirava tão bem, foi jogado no vaso sanitário. Elas tentaram me garantir que eu não ficaria doente.
A minha cabeça está cheia com as moscas que engoli. Será que eu quebrei os ossos delas e esmaguei os corpos com meus dentes? Ou será que as engoli inteiras? Puxa! Mas escrevi uma historinha engraçada!
21 de abril — Chuva leve
Resolvi que vou ter um filhote de mosca como animal de estimação.
No domingo passado não tive nenhum tratamento intravenoso, então dormi bem, até ser despertada por uma sensação suave na pele, um arrepio. Como só estava parcialmente acordada e com muita preguiça de me mexer, fiquei imaginando de onde viria a sensação. Fosse a causa qual fosse, continuava lá, subindo e descendo apressada pela minha perna, mas não me perturbava nem me assustava de maneira alguma. Era
como se um par de mãos minúsculas me acariciasse suavemente. Eu me senti muito grata àquele par de mãozinhas e quis saber de quem eram. Abri os olhos e vi:
Era uma mosca! Que horror! Moscas são cheias de germes e sujeira de esgoto! Mas eu não sabia que as patas de uma mosca podem ter um toque tão suave eleve, ainda que sejam sujas. Esperei vários dias por aquelas “mãozinhas”, mas elas não voltaram.
Hoje de manhã, enquanto me tiravam uma radiografia depois de me darem uma boa dose de bário, de repente lembrei da visita que fiz ao laboratório no hospital e dos animaizinhos que os médicos criam para fazer experimentos. Eu poderia criar uma mosca limpa! Sim, decidi encontrar um filhote de mosca e mantê-lo no meu mosquiteiro.
25 de abril — Nublado
É muito difícil encontrar um filhote de mosca. O mundo está cheio de moscas grandes, zumbindo por toda parte, pousando nas coisas mais imundas e fedorentas, mas não me atrevo a tocá-las. Tenho muita vontade de pedir conselho ao dr. Zhong. Ele é especialista em biologia e com certeza deve saber onde encontrar um filhote de mosca. Mas se eu perguntar, ele vai achar que sou louca.
8 de maio — Ensolarado Estou muito cansada, muitíssimo cansada.
Dois dias atrás eu finalmente apanhei um filhote de mosca. É muito pequeno. Estava lutando contra uma teia de aranha numa pequena macieira no bosque atrás da cantina. Cobri a mosca e a teia com um saco que fiz com uma máscara de gaze e levei para o meu quarto. Quando passei pela sala de tratamento, o enfermeiro Zhang me perguntou o que era que eu tinha pegado. Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça, que era uma borboleta, depois corri para o meu quarto e me enfiei dentro do mosquiteiro. Abri o saco de gaze bem devagarinho e, para minha surpresa, as fibras da gaze tinham soltado a teia de aranha e a mosquinha podia se mover livremente. Achei que ela devia estar muito cansada e com fome, depois de passar sabe-se lá quanto tempo presa, então corri até a sala dos funcionários, roubei um pedacinho de gaze e derramei nele um pouco de solução de glicose. Depois corri até a cozinha e peguei um pedaço de carne da panela das sobras. Quando voltei para o mosquiteiro, a mosquinha não parecia ter saído do lugar. Batia debilmente as asas minúsculas, parecia faminta e cansada. Pus a carne em cima da gaze com glicose e empurrei-a com cuidado para a
mosquinha. Bem nesse momento ouvi o som do carrinho de remédios. Estava na hora dos remédios da tarde. Eu tinha que achar alguma coisa com que cobrira mosca, não podia deixar que a descobrissem. Gosto de colecionar pequenos recipientes, por isso foi muito fácil achar uma caixa com uma tampa de plástico transparente onde pôr a mosca e o “ninho” de gaze. Tinha acabado de fazer isso quando o enfermeiro Zhang entrou com o carrinho. Ele disse: “E a sua borboleta? Deixe verse é bonita ou não,”
“Eu... eu achei que no final das contas não era muito bonita e soltei” menti, gaguejando.
“Não tem importância. Um dia desses eu pego uma bonita para você” disse ele, para me consolar.
Agradeci, torcendo para que ele se apressasse e fosse embora logo. Estava preocupada com o meu filhote de mosca. É muito mais difícil criar um filhote de mosca do que um gatinho. Todo mundo gosta de gatinhos, por isso quando se tem um gatinho muita gente ajuda. Mas ninguém gosta de moscas. Fico preocupada que alguém possa matá-la, ou que ela fuja. Nos últimos dias não me atrevi a sair para fazer um pouco de exercício, porque tenho medo de que ela sofra um acidente. À noite também não durmo direito, de preocupação que os médicos e enfermeiros a espantem. Fico prestando atenção aos passos deles e estendo o braço para fora do mosquiteiro antes que entrem, para que possam tomar o meu pulso e a temperatura sem levantar o mosquiteiro.
Tem sido assim todo dia, há vários dias. Estou realmente muito cansada. Mas é muito melhor do que dormir lá em casa. Além disso, o meu filhote de mosca parece muito melhor agora. Está crescendo bem devagar, mal parece estar crescendo. Mas não tem importância, porque não gosto mesmo daquelas moscas grandes de cabeça verde. O filhote está sempre pousando em mim. Às vezes faz cócegas, e adoro a sensação suave na minha pele. Também gosto quando brinca nas minhas bochechas, mas não deixo que me beije.
11 de maio — Ensolarado
Nos últimos dias não precisei de tratamento na veia. O dr. Zhong diz que vou continuar aqui por mais alguns dias, em observação e para fazer um tratamento novo. Não me importa o que eles façam, contanto que eu possa ficar aqui e não tenha que voltar para casa. O meu filhote de mosca está maravilhoso.
Fiz uma casa para ele, onde pode ficar em segurança e também andar de um lado para o outro. É uma coberta de gaze, do tipo que usam na cantina para cobrir a comida. O cozinheiro-chefe me deu porque eu disse que ficava presa aos tubos de remédios todos os dias, não podia fazer as refeições nos horários regulares e queria alguma coisa para impedir que caíssem moscas e outros bichos na minha comida. O cozinheiro-chefe é uma boa pessoa. Concordou na mesma hora, e até costurou um saquinho de gaze especialmente para eu guardar tigelas e utensílios limpos. Assim, a mosquinha tem a sua casa especial, mas o mais importante é que está em segurança lá dentro. Ninguém desconfiaria de que existe uma mosca dentro do protetor contra moscas. Além disso, não tenho que correr até a cantina para buscar comida: ela pode comer do meu arroz e dos meus legumes comigo. Posso dormir em paz de novo.
Está fazendo um sol lindo hoje. Pus a mosca na casa dela, aos pés da minha cama, e fiquei vendo enquanto ela comia açúcar, com a lupa da Velha Mãe Wang que pedi emprestada. Sob a lente a mosca parece um velhinho — é toda peluda! Fique tão admirada que larguei a lupa na mesma hora. Não quero vê-la assim feia. A olho nu é muito bonitinha: tem o corpo minúsculo, não dá para dizer direito se é cinza, marrom ou preta (talvez seja malhada); as asas brilham ao sol como dois pequenos diamantes; as pernas são tão finas que me fazem pensar nas pernas de uma bailarina; os olhos são como bolinhas de vidro. Não consegui encontrar as pupilas. Ela dá a impressão de que nunca está olhando para nada. O meu filhote de mosca parece bem engraçado em cima da gaze açucarada: mexe as patas da frente o tempo todo, para a frente e para trás, esfregando uma na outra, como as pessoas fazem quando lavam as mãos.
9 de junho — Nublado, claro mais tarde
Tenho me sentido muito fraca nos últimos dias, mas na hora dos exames diários não tenho febre nem pressão muito baixa. Hoje eu mal conseguia enxergar a peteca enquanto jogava badminton com Yulong e houve um momento em que quase caí, tentando revidar o saque dela. Estou com a visão embaçada, tudo parece ter uma sombra trêmula. Por sorte o dr. Zhong estava de plantão hoje. Quando falei com ele sobre a situação, disse que vou ter que voltar para o prédio central do hospital para fazer outro exame de sangue.
Não vou escrever mais nada. Estou enxergando tudo dobrado. Nem consigo ver direito o meu filhote de mosca, ele é pequeno demais. E hoje parece que são dois. O
enfermeiro Zhang diz que vai me dar uma coisa bonita hoje, mas estou indo dormir e ele ainda não veio. Devia estar só falando por falar. Não vou escrever mais hoje, estou com muito sono. Boa noite, querido diário.
11 de junho — ?
Só agora parei de chorar. Ninguém sabia por que eu estava chorando. Os médicos, os enfermeiros e os outros pacientes pensaram que eu estivesse com medo de morrer. A verdade é que não tenho medo de morrer. A Velha Mãe Wang diz que “a vida e a morte estão separadas por um fio.” Acho que ela deve ter razão. A morte deve ser como o sono; gosto de dormir e de estar longe deste mundo. Além disso, se eu morresse, não teria que temer que me mandem para casa. Tenho só dezessete anos, mas acho que é uma boa idade para morrer. Serei jovem para sempre e jamais ficarei velha como a Velha Mãe Wang, que tem o rosto todo marcado de rugas.
Eu estava chorando porque o meu filhote de mosca morreu. Anteontem à noite, escrevi só algumas linhas no meu diário tive que parar, porque me senti muito tonta. Levantei para ir ao banheiro e, na volta, bem quando estava prestes a me deitar de novo, vi um par de olhos demoníacos na cabeceira da cama, cravados em mim. Fiquei com tanto medo que gritei e desmaiei.
O dr. Liu disse que delirei pela metade de um dia, gritando tempo todo sobre moscas, demônios e olhos. A Velha Mãe Wang disse a todos os outros pacientes que eu estava possuída por um mau espírito, mas a enfermeira-chefe mandou-a parar de dizer bobagem.
O dr. Zhong entendeu a razão do meu colapso e deu um carão terrível no enfermeiro Zhang. É que o enfermeiro Zhang passou várias horas caçando uma borboleta grande e recoberta de desenhos para me dar de presente. Prendeu a borboleta viva na cabeceira da minha cama com um alfinete, para me fazer uma surpresa agradável, sem poder imaginar que eu ficaria tão assustada.
Enquanto eu delirava, não pude cuidar da minha mosquinha e alguém pôs em cima da minha mesa-de-cabeceira umas coisas que a esmagaram dentro do saco de gaze. Foi bem difícil encontrá-la mas, quando achei, o corpo minúsculo já estava ressecado. Pobre mosquinha. Morreu sem nem mesmo ter crescido. Coloquei-a com todo o cuidado numa caixa de fósforos que eu vinha guardando fazia muito tempo. Forrei a caixa com um pedaço de algodão branco que puxei do recheio do meu
acolchoado. Quis que ela dormisse com um pouco mais de conforto.
Amanhã vou enterrá-la no bosque em cima da colina atrás do hospital. Não vai muita gente lá, é muito tranqüilo.
12 de junho – Nublado
Hoje de manhã o céu estava escuro e melancólico. Também estava tudo cinzento nas enfermarias: tudo ao meu redor refletia os meus sentimentos. Estive o tempo todo à beira das lágrimas, pensando na mosquinha que nunca mais vai brincar comigo de novo. O dr. Zhong diz que o meu nível de glóbulos brancos está baixo demais e que é por isso que me sinto fraca. A partir de hoje tenho que tomar três frascos de um remédio novo, na veia; cada frasco, de meio litro, leva duas horas; os três frascos vão levar quase seis horas. Vai ser muito difícil ficar deitada aqui sozinha, contando as gotas de remédio. Vou sentir saudade do meu filhote de mosca. Ao meio-dia, o sol saiu, meio hesitante, mas a todo instante se escondia atrás das nuvens. Não sei se estava brincando de esconde-esconde, se também estava muito doente ou se estava só com muita preguiça de brilhar para nós. Talvez também estivesse triste pelo filhote de mosca e chorando em segredo. O remédio só terminou depois do jantar, mas eu não estava com muito apetite. Queria enterrar a mosquinha enquanto ainda estivesse claro.
Envolvi a caixa de fósforos no meu lenço favorito e, dando uma volta para evitar a sala dos funcionários, fui às escondidas até o pequeno bosque no alto da colina. Escolhi um lugar perto de uma pedra que dava para ver aqui de baixo e resolvi enterrar a mosca ali. Queria usar a pedra como uma lápide que eu pudesse enxergar com facilidade da porta dos fundos do hospital. A terra estava muito dura — escavar com as mãos não deu certo. Tentei com um graveto, mas continuou difícil, aí resolvi procurar um galho mais grosso. Deixei a caixa de fósforos em cima da pedra e subi um pouco mais a colina, à procura do galho. De repente ouvi alguém respirando forte e gemendo de modo estranho. Logo depois vi uma mulher e um homem rolando num trecho do bosque recoberto de grama. Não conseguia enxergar com clareza, mas eles pareciam estar lutando. A respiração soava como a de uma pessoa morrendo.
Comecei a tremer de medo. Não sabia o que fazer. Tinha visto cenas como aquela em filmes, mas nunca na vida real. Eu sabia que estava muito fraca e que não tinha forças nem para socorrer a mulher, muito menos para segurar o homem. Achei melhor ir buscar ajuda. Agarrei a minha caixa de fósforos — não podia deixar o meu
filhote de mosca ali sozinho — e voltei correndo para o hospital. A primeira pessoa que vi quando cheguei ao pé da colina foi a enfermeira-chefe, que estava à porta do hospital, procurando por mim. Eu estava tão cansada e ofegando tanto que não consegui falar, mas apontei aflita para a colina. O dr. Zhong, que tinha terminado o turno dele e estava saindo do hospital, veio perguntar o que tinha acontecido. Eu não soube o que dizer para fazê-los entender. “Acho que alguém vai morrer!”
O dr. Zhong correu até o alto da colina e a enfermeira-chefe me deu oxigênio. Eu estava tão exausta que adormeci enquanto o inalava. Quando acordei, fui à sala dos funcionários. Queria saber se a mulher no bosque tinha sido salva e como ela estava. Curiosamente, a enfermeira Gao, que estava de plantão, não me contou nada. Só me deu um tapinha na cabeça e disse: “Ah, você...” “Eu o quê?” Fiquei muito embaraçada. Ainda não sei o que aconteceu.
13 de junho — Ensolarado
Encontrei um lugar seguro para o filhote de mosca. Hoje à tarde uma das enfermeiras me deu uma caixa de bombons de licor. Adoro bombons de licor: gosto de fazer dois furos neles com uma agulha e sugar o licor (não dá para sugar com um furo só). Hoje, enquanto fazia isso, de repente tive uma idéia. Podia pôr o filhote de mosca num bombom vazio e guardar na geladeira da sala dos funcionários (a enfermeira-chefe disse que eu podia guardar comida lá). Então, pus a mosquinha num bombom de licor, que ela certamente teria gostado de comer. Assim, também posso visitá-la com freqüência. Sou esperta, não sou? Sou, sim! Pelo menos acho que sou.
23 de junho — Calor e vento
Yulong vai receber alta amanhã. Não quero que ela vá embora. Claro que, para ela, é bom sair do hospital.
O que é que vou dar a Yulong como presente de despedida?
24 de junho — Quente e úmido
Yulong foi embora. Não pude acompanhá-la até a porta porque estava tomando remédio. Um pouco antes de ir, ela teve permissão para vir ao meu quarto dizer adeus. Afagou suavemente a minha mão, que estava coberta de furos de agulha, e conversou comigo afetuosamente. Aconselhou-me a não lavar as mãos em água fria, mas
mergulhá-las em água quente, para que os vasos sangüíneos cicatrizem mais depressa. Também me deu um par de luvas que tricotara especialmente para mim. Pretendia me dar as luvas mais tarde, no começo do inverno. Deu uma boa olhada no meu quarto, cheio de equipamento médico, e me elogiou por mantê-lo tão limpo e arrumado.
Perguntei se ela sabia o que tinha acontecido com a mulher na colina. Ela não sabia do que eu estava falando, então contei o que tinha visto. Ela ficou muito quieta e seus olhos se encheram de lágrimas.
Dei a Yulong o desenho que eu tinha feito de uma mosquinha bonita, que emoldurei com borracha velha, pedaços de celofane e papelão.
Yulong disse que nunca tinha visto um desenho de uma mosca tão bonito, e também elogiou a originalidade da moldura. Desejei-lhe tudo de bom, mas secretamente esperei que ela voltasse logo para o hospital, para me fazer companhia.
16de julho — Chuva
Eu jamais teria imaginado que seria responsável por arruinar a vida de Yulong.
Hoje recebi uma carta dela, mandada da sua aldeia:
Querida Hongxue,
Você vai bem? Continua tomando remédios na veia? Sua família não pode cuidar de você, portanto você precisa aprender a cuidar de si mesma. Por sorte, todos os médicos e enfermeiros do hospital gostam de você, assim como os outros pacientes. Todos nós esperamos que você possa retornar em breve para o lugar onde deve estar, entre seus parentes e amigos.
Fui expulsa da academia militar e mandada de volta para a minha aldeia sob escolta. Todos os aldeães dizem que eu destruí as esperanças deles. Nunca lhe contei que sou órfã. Meus pais morreram, um logo após o outro — um de doença e o outro, provavelmente, de fome — pouco depois de eu ter nascido. Os habitantes da aldeia tiveram pena de mim e se revezaram para me criar. Eu comia a comida de cem casas e usava a roupa de cem famílias. A aldeia era paupérrima. Os aldeães fizeram seus próprios filhos passar privações para me mandar para a escola. Fui a primeira menina da aldeia a freqüentar a escola. Quatro anos atrás a academia militar veio à região recrutar estudantes entre os camponeses e os trabalhadores. O secretário do nosso setor do Partido viajou comigo a noite toda até o quartel para implorar aos líderes do exército que me aceitassem. Disse que era o desejo mais profundo de todos na aldeia.
Os líderes contaram a minha história aos camaradas deles e acabei recebendo uma permissão especial para participar do treinamento prático e, depois, ingressar na academia. Estudei russo e comunicações militares. Quase todos os meus colegas de classe vinham do interior. Como o principal requisito para a admissão eram antecedentes políticos corretos, havia diferenças enormes nos níveis de educação. Eu era a melhor da classe, porque tinha freqüentado o colegial durante um ano. Além disso, parecia ter jeito para idiomas, pois as minhas notas em russo eram sempre muito boas. Todos os instrutores do departamento diziam que eu tinha potencial para ser diplomata e que eu não teria problema algum em trabalhar no mínimo como intérprete. Eu me esforçava muito, e nunca parei de estudar por causa do reumatismo que tinha desde que era criança. Queria retribuir a generosidade dos aldeães que me haviam criado. Hongxue, o ano passado eu já não conseguia evitar a realidade de que tinha crescido, e estava penosamente ciente de que era uma mulher adulta. Você ainda não compreende isso, mas vai compreender em poucos anos.
Irmãzinha, era eu a mulher que você quis “salvar” na colina atrás do hospital.
Eu não estava sendo agredida, estava com o meu namorado... O dr. Zhong e os outros nos mandaram para o Departamento de Disciplina Militar. Meu namorado foi preso e interrogado, e eu fui mandada de volta para o hospital, sob prisão domiciliar, porque precisava de tratamento. Naquela noite meu namorado, que tinha um senso de honra muito forte, cometeu suicídio. No dia seguinte, funcionários do Departamento de Disciplina Militar, do Departamento de segurança Pública — e de outros departamentos também, talvez — foram ao hospital para investigar. Disseram que eu tinha fornecido ao meu namorado os “meios de cometer o crime de matar-separa o Partido e para o povo, para sempre” (disseram que suicídio é crime). Recusei-me a dizer que tinha sido violentada e, em vez disso, jurei amor eterno ao meu namorado.
O preço pago pelo meu amor é estar de volta como camponesa a esta aldeia tão pobre. Os aldeães agora me evitam. Não sei se há um lugar aqui para mim.
Meu namorado era um bom homem, eu o amava muito. Não estou escrevendo esta carta porque a responsabilize de alguma forma. Sei que você ainda é muito jovem e que tentou salvar alguém por pura generosidade. Prometa que não vai se sentir infeliz por causa disto. Caso contrário, o preço que estou pagando se tornará ainda mais alto.
Finalmente, irmãzinha, está disposta a responder a estas perguntas:
Por que não quer ver o seu pai?
O que a fez pensar em desenhar uma mosca e por que a fez tão bonita?
Espero que em breve você esteja feliz e bem de saúde.
Sinto saudade de você. Yulong.
À luz de vela, à noite, 30 de junho de 1975.
me ignorado recentemente. É que sabem do fim trágico de Yulong e que eu sou a culpada, a criminosa que causou tamanha infelicidade a ela. Yulong, eu lhe fiz algo de imperdoável. Quem poderá me perdoar?
30 de julho — Calor opressivo antes de uma tempestade
Faz dias que praticamente não saio. Não quero ver ninguém. Tenho cada palavra da carta de Yulong gravada no cérebro. As perguntas dela não vão embora: Por que não quer ver o seu pai? O que a fez pensar em desenhar uma mosca e por que a fez tão bonita?
Para responder a Yulong, terei que lembrar e voltar ao inferno. Mas Yulong foi banida para o inferno por minha causa. Portanto, tenho que fazer a viagem. Não posso recusar isso a ela. A mosquinha continua dormindo dentro do bombom de licor; mais nada pode perturbá-la agora.
Olhando para ela, hoje, senti muita inveja.
8 de agosto — Quente
Faz quinze dias que está quente e úmido o tempo todo. Não sei o que está se armando lá no céu para fazer as pessoas suarem desse jeito aqui embaixo.
Preciso de coragem, coragem para lembrar. Preciso de forças, e de força de vontade.
Repasso com dificuldade as minhas recordações e a dor gruda como lama; o ódio, que tinha desaparecido gradualmente neste mundo branco de doenças, volta correndo de repente.
Quero escrever a Yulong, mas não sei por onde começar. Não sei como responder com clareza às perguntas dela. Só sei que será uma carta muito longa.
Nos últimos três dias não tive coragem de olhar a mosquinha. Ela fala comigo nos meus sonhos... ah, está calor demais!
18 de agosto — Fresco
O céu finalmente manifestou seus sentimentos. Está um céu de outono alto e o ar está limpo e fresco. Todo mundo parece ter soltado um suspiro de alívio e expulsado a melancolia de tantos dias. Os pacientes, que estavam sufocando no hospital, com medo do calor, agora encontram pretextos para sair.
Não tenho vontade de ir a lugar nenhum. Tenho que escrever Yulong. Mas hoje de manhã levei o filhote de mosca para uma caminhada de meia hora numa caixa de fósforos. Tive medo de que o chocolate derretesse e ferisse a mosquinha, e fui logo guardá-la na geladeira.
Ontem o dr. Zhong me fez uma advertência durante as suas rondas. Disse que, embora os resultados do meu exame de sangue tenham mostrado que não tenho nenhuma doença grave, o meu sangue é anormal por causa das sucessivas febres altas e dos efeitos colaterais dos remédios. Se eu não fizer repouso como devo, é muito provável que tenha septicemia. A enfermeira Gao me assustou, dizendo que se morre de septicemia. Também disse que depois de passar dez horas presa a um tubo, eu não devia sentar à mesa para escrever, sem descansar nem fazer exercício. O enfermeiro Zhang pensou que eu estivesse escrevendo outra dissertação para a revista do Exército de Libertação Popular ou a da Juventude da China e me perguntou, muito interessado, sobre o que eu estava escrevendo. Consegui que várias das minhas dissertações fossem publicadas e o enfermeiro Zhang deve ser o meu leitor mais entusiasmado.
24 de agosto — Ensolarado
Hoje mandei uma carta registrada para Yulong. Estava muito grossa e o selo custou todo o dinheiro que recebi por uma das minhas dissertações. Eu costumava sonhar que encontraria um jeito de lavara minha dor, mas será que posso lavar a minha vida? Posso lavar o meu passado e o meu futuro?
Freqüentemente examino meu rosto com atenção no espelho. Parece liso de juventude, mas eu sei que tem as cicatrizes da experiência: é despido de vaidade e muitas vezes mostra dois vincos fundos na testa, sinais do terror que sinto dia e noite. Meus olhos não têm nada do brilho ou da beleza dos olhos de uma garota. No fundo deles há um coração que se debate. Dos meus lábios machucados foi raspada toda a esperança de sensação; minhas orelhas, fracas por causa da constante vigilância, nem agüentam um par de óculos; meu cabelo, que deveria brilhar de saúde, não tem vida,
por causa da preocupação. É esse o rosto de uma garota de dezessete anos? O que são as mulheres, exatamente? Os homens devem ser classificados na mesma espécie que as mulheres? Porque é que eles são tão diferentes? Livros e filmes podem dizer que é melhor ser mulher, mas não consigo acreditar. Nunca achei que isso fosse verdade e jamais vou achar. Por que é que essa mosca grande que entrou zumbindo aqui esta tarde está sempre pousando no desenho que acabei de fazer? Será que ela conhece o filhote que está no desenho? Eu a enxoto, mas ela não tem medo. Quem tem medo sou eu. E se for a mãe do filhote? Isto é grave. Preciso...
25 de agosto — Ensolarado
Ontem eu não tinha acabado de escrever quando chegou a hora de apagarem as luzes. Aquela mosca grande ainda está no meu quarto hoje. É muito esperta. Toda vez que alguém entra, ela se esconde, não sei onde. Assim que saem do quarto, ela vem pousar no meu desenho ou fica zumbindo ao meu redor. Não sei o que está fazendo. Tenho a sensação de que não quer me deixar.
De tarde o dr. Zhong disse que, se o meu estado se estabilizar, o tratamento terá se mostrado eficaz e vou receber alta, para recuperar as forças em casa, ainda que tomando remédios. A enfermeira-chefe disse que a partir do outono vai haver uma grande falta de leitos e que as pessoas que têm doenças prolongadas terão que deixar o hospital. Voltar para casa? Seria terrível! Tenho que pensar num jeito de continuar aqui.
26de agosto — Nublado
Quase não dormi a noite inteira. Pensei em várias saídas, mas todas parecem impossíveis. O que é que eu posso fazer? O mais rápido seria me contaminar com alguma doença, mas o acesso às enfermarias de doenças contagiosas é restrito. Hoje estava com a cabeça tão cheia de planos para continuar aqui, que pulei um degrau na escada da cantina. Dei um passo em falso e caí. Fiquei com uma grande mancha roxa na coxa e um corte no braço. Na mudança de turnos, a dra. Yu disse à enfermeira que passasse mais um pouco de pomada no meu braço. Disse que eu tenho uma constituição fraca e posso facilmente desenvolver uma septicemia, e insistiu que a enfermeira ficasse atenta a moscas na hora de trocar o curativo, porque as moscas são grandes portadoras de doenças. À noite o enfermeiro de plantão disse que havia moscas no meu quarto e que ele ia borrifar inseticida.
Eu não queria que a mosca grande morresse, e disse ao enfermeiro que sou alérgica a inseticidas. Ele disse que então vai matar as moscas amanhã, com um mata-moscas. Não sei onde a mosca grande está escondida. Pretendo deixar a janela aberta quando for dormir para que ela possa escapar. Não sei se isso a salvará.
27de agosto — Chuviscando
Não consegui salvar a mosca. Às 6h40 da manhã a dra. Yu veio examinar o quarto e a esmagou em cima do meu desenho. Dizendo que queria conservar o desenho, não deixei que a dra. Yu se livrasse da mosca grande e coloquei-a na geladeira, junto com a mosquinha. Não sei por quê, mas sempre achei que as duas tinham um relacionamento especial.
Acho que o ferimento no meu braço está levemente infeccionado. Virou um grande caroço vermelho e está muito desconfortável escrever. Mas eu disse à enfermeira que trocou o curativo que estava tudo bem e que não precisava passar mais pomada. Para minha surpresa, ela acreditou! As mangas compridas do pijama do hospital cobrem os meus braços completamente. Espero que dê certo.
“Moscas são grandes portadoras de doenças.” As palavras da Dra. Yu me deram uma idéia, que decidi experimentar. Não me importo com as conseqüências. Até a morte é melhor do que voltar para casa. Vou esmagar a mosca grande em cima do corte no meu braço.
30 de agosto — Ensolarado
Sucesso! Faz dois dias que a minha temperatura não pára de subir. Eu me sinto muito doente, mas feliz. O dr. Zhong está muito surpreso com o agravamento do meu estado; vai fazer outra série de exames de sangue. Nos últimos dias não visitei o meu querido filhote de mosca. Tenho a sensação de estar com cãibra no corpo todo. Mosquinha, desculpe.
7 de setembro
Ontem à noite me levaram para o prédio central do hospital. Estou cansada e com sono. Sinto saudade da mosquinha, sinto mesmo. E não sei se Yulong respondeu à minha carta... Terminei de ler este diário quando o sol lançava seus primeiros raios a leste e o ruído das pessoas chegando para trabalhar começava a se insinuar das salas
vizinhas. Hongxue morrera de septicemia. Na caixa de papéis havia um certificado de óbito, datado de 11 de setembro de 1975.
Onde estava Yulong? Terá sabido da morte de Hongxue? Quem era a mulher aparentando uns quarenta anos que deixou a caixa para mim? As dissertações que Hongxue publicou teriam sido tão bonitas quanto os textos na caixa? Ao ser informado sobre o suicídio da filha, o pai de Hongxue sentiu remorso? Será que a mãe, que tratou a filha como um objeto a ser sacrificado, algum dia descobriu em si mesma um pouco de natureza materna? Eu não sabia as respostas a essas perguntas. Não sabia quantas meninas molestadas sexualmente estavam chorando entre os milhares de almas que dormiam na cidade naquela manhã.